Ricardo Tokugawa é fruto de imigracão: sansei, de ascendência okinawana, traz a mistura de três culturas no seu percurso: Brasil, Okinawa e Japão. Compreender o significado dessa posição vai muito além de questões geográficas e culturais, implica um enfrentamento pessoal, na busca pelo entendimento de si no mundo.
Utaki, em okinawano, traduz a ideia de um lugar sagrado, lugar de oração, geralmente espaços na natureza: um bosque, caverna ou montanha, acessados por poucos. Esse olhar para o sagrado, de acordo com a necessidade sentida pelo fotógrafo, se volta para suas raízes, num processo de investigação da família e da casa, conceitos que se misturam dentro da cultura japonesa.
As fotografias afixadas no butsudan, o oratório japonês, marcam a presença dos antepassados no espaço da casa. Os vestígios deixados na forma de retratos 3x4 lembram que as fronteiras do visível estão constantemente permeadas pelo mundo invisível dos mortos.
Qual a experiência possível para o encontro mediado com o que não está presente, ainda que se faça presença? Como a fotografia pode dar forma a esse encontro? Qual a real distância que nos aproxima/separa do(s) outro(s)? A proximidade ou distância se constrói nas complexas relações de tempos, espaços e afetos a que a arte pode dar forma.
Aquele que fotografa escreve ali o (novo) vestígio, o de seu próprio sujeito. Ao mesmo tempo, expõe e repensa as diversas possibilidades em torno do ato fotográfico. Incluir-se como personagem de si mesmo numa narrativa a um tempo ficcional e documentária, ausente e presente, marca a subjetividade incompleta e fragmentada do autor. Funciona como mecanismo mediador, na tentativa de torná-la “visível”, minimamente consciente. A fotografia, para Ricardo, brinca ao copiar falsamente o real, é ferramenta e artifício posto em face de uma realidade aberta ao trânsito entre mundos. Abertura para outros saberes, a fotografia opera a mescla imaginativa dos fatos e da (auto)ficção, contradiz e se põe para além do documento. Nessa construção híbrida, nos atritos entre realidade e fantasia, inquietações se revelam, autor e narrador compõem ambíguo protagonismo. A força de Utaki reside no jogo inventado, em sua ambivalência, na lógica do “ao mesmo tempo” que o preside e abre espaços para que sempre se possa imaginar outras coisas, campo aberto.
Ricardo recria e confronta modelos, a nos sugerir que a tradição é algo inventado. Até mais do que isso, sua obra desafia a própria noção de tradição, evidenciando o caráter performático da existência humana, uma vez que o artista produz e atualiza seus próprios rituais de passagem. Nesses hiatos, se instaura a tensão interna da obra: são momentos de deslocamento, de presença e de falta, de encontro, afastamento e retorno. Essas práticas discursivas tornam a experiência narrada mais potente, rompendo com os muros da casa para alcançar, assim, distâncias maiores, outros modos de habitar o próprio corpo e os espaços domésticos. Convida todos os membros de seu munchuu, os que estão sob o mesmo teto, a participarem de seu mundo particular, compartilhando e trocando experiências. Torna-se diretor de cena e, na elaboração de narrativa própria e única, teatraliza o cotidiano.
Utaki nos incita a olhar, de dentro para fora, para nossas próprias questões identitárias, os reconhecimentos e estranhamentos que, de dentro de nossas tradições, lugares, costumes e hábitos particulares, não cessam de se mover e se renovar. Enquanto (des)construção de experiência, memória e arquivo familiar, a história contada, a experiência vivida, passam a não ser mais só memória pessoal, mas confronto dinâmico com as próprias alteridades, sempre presentes. Nessa travessia, faz de si mesmo um instrumento e uma realidade para o outro, uma prática de mundo.
Daniel Salum
[EN]
Ricardo Tokugawa is the produce of immigration: Sansei, of Okinawan descent, he carries the mixture of three cultures in his path: Brazil, Okinawa and Japan. Understanding the meaning of this position goes far beyond geographic and cultural issues, implies a personal confrontation, in his pursuit to understand himself in the world.
Utaki, in Okinawan, translates the idea of a holy place, place of prayer, usually spaces in nature: a forest, cave or mountain, accessed by few. This look at the sacred, in line with the need felt by the photographer, glances at his roots, in a process of investigation of family and home, concepts that are blended within Japanese culture.
The photographs posted on the butsudan, the Japanese shrine, mark the presence of the ancestors in the space of the household. The traces left in the form of 3x4 portraits remind us that the borders of the visible are constantly permeated by the invisible world of the deceased.
What is the possible experience for the mediated encounter with what is not present, even if presence is yet made? How can photography give shape this encounter? What is the real distance that bring us closer to/separates us from the other(s)? Proximity or distance is built on the complex relationships of time, space and affections to which art can give shape.
The one who photographs then writes the (new) trace, that of his own subject and, in doing so, also exposes and rethinks the various possibilities that inhabit around the photographic act. Including oneself as one’s own character in a narrative which is both fictional and documentary, absent and present, marks the author’s incomplete and fragmented subjectivity. It works as a mediating mechanism, in an attempt to make it “visible”, minimally conscious. Photography, for Ricardo, is a game of falsely copying the real, it is a tool and artifice placed in the face of a reality which is open to transit between worlds. Opening to other sorts of knowledge, photography operates the imaginative blend of facts and (self)fiction, contradicting and putting itself beyond the document. In this hybrid construction, in the friction between reality and fantasy, concerns are revealed, author and narrator compose an ambiguous protagonism. Utaki’s strength resides in this concocted game, in its ambivalence, in the logic of “in the meantime” that presides over it and opens spaces so that one can always imagine other things, it is an open field.
Ricardo recreates and confronts models, suggesting to us that tradition is something invented. Way further than this, his work challenges the very notion of tradition, highlighting the performative character of human existence, as the artist produces and updates his own rites of passage. In these gaps, the work’s internal tension is established: there are moments of displacement, presence and absence, encounter, estrangement and return.  These discursive practices make the narrated experience more potent, breaking the walls of the house to therefore reach greater distances, other ways of inhabiting one’s own body and domestic spaces. He invites all members of his munchuu, those who dwell under the same roof, to take part in his private world, sharing and exchanging experiences. He becomes a stage director and, in the elaboration of his own and unique narrative, he dramatizes everyday life.
Utaki urges us to look, from the inside out, at our own identity issues, recognitions, and estrangements which, from within our particular traditions, places, rituals and habits, do not cease to move and refresh themselves. While (de)construction of experience, memory and family archive, the story told and the experience lived are no longer just personal memory, but a dynamic confrontation with one’s own alterities, always present. In this crossing, he makes himself an instrument and a reality for the other, a world practice.
Daniel Salum
Livro (Book)
Utaki é vencedor do Prêmio Lovely Boneco Fotolivro '21 na primeira edição da Imaginária_festa do fotolivro e está à venda no site da Lovely House.
Foi seleção destaque na Convocatória de Fotolivros do Festival ZUM (2021), premiado na categoria de melhor edição do Prêmio Internacional de Fotolivro FELIFA (2021), eleito um dos melhores fotolivros de 2021 pelo periódico espanhol El País e finalista no Festival Internacional de Fotografia de Cingapura (2022).

"O reduto familiar é esse local sagrado que o fotógrafo brasileiro Ricardo Tokugawa está interessado em investigar, interrogar e compreender em seu primeiro fotolivro.
Assim como na ficção, o começo de um fotolivro é um dos momentos mais importantes, pois dará o tom de tudo o que segue e fisgará (ou não) o leitor. Em Utaki (2021), ele é muito bem-resolvido e se desdobra com serenidade e firmeza ao introduzir a casa e a família, alternando imagens de ambas para mostrar como estão fundidas.
Há três movimentos interessantes aqui: voltar (depois de já ter saído) para a casa dos pais, a fim de realizar um trabalho artístico; fotografar a casa, com seus cantos e detalhes, e fotografar os pais, a avó e a si mesmo, em performances posadas para a câmera; emular uma nova saída, metafórica, de lá. E, no meio disso, lidar com a doença (provavelmente um câncer) pela qual o pai passa, registrando esse processo duro. Dessa forma, o autor elabora um ensaio sobre legado e memória – a sua, a de sua família e a de seus ancestrais."
Miguel del Castillo para coluna da Livraria Megafauna
[EN]
Utaki is the winner of the Lovely Dummy Photobook '21 Prize in the first edition of the Imaginária_photobook festival and is on sale at Lovely House website.
It was a highlight selection in the ZUM Festival Photobook Call (2021), awarded in the category of best edition of the FELIFA International Photobook Award (2021), elected one of the best photobooks of 2021 by the Spanish newspaper El País and finalist at the Singapore International Photography Festival (2022).

"The family stronghold is this sacred place that Brazilian photographer Ricardo Tokugawa is interested in investigating, interrogating and understanding in his first photobook.
As in fiction, the beginning of a photobook is one of the most important moments, because it will set the tone of everything that follows and will hook (or not) the reader. In Utaki (2021), he is very well-resolved and unfolds with serenity and firmness when introducing the house and family, alternating images of both to show how they are fused.
There are three interesting movements here: returning (after having already left) to the parents' house, in order to perform an artistic work; photographing the house, with its corners and details, and photographing the parents, the grandmother and himself, in performances posed for the camera; emulating a new, metaphorical exit, from there. And, in the middle of this, dealing with the disease (probably a cancer) that the father goes through, recording this hard process. In this way, the author prepares an essay on legacy and memory - his, that of his family and that of his ancestors."
Miguel del Castillo for Megafauna Bookstore column
Exposições (Exhibitions)
Museu da Imagem e do Som (MIS-SP), 2023
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